A divulgação do Programa Nacional de Revitalização do Ecoturismo Náutico, proposto pelo Embratur, prevê o afundamento de centenas de embarcações, aviões, esculturas gigantes e outros equipamentos, com o objetivo de estimular o turismo náutico no país.

Contudo, precisamos nos perguntar: quais serão os impactos que a instalação dessas estruturas poderá trazer aos ambientes marinhos e à sua biodiversidade?

O litoral brasileiro já possui inúmeros recifes naturais e centenas de naufrágios históricos. Será que novos afundamentos são necessários para impulsionar o crescimento socioeconômico e o turismo?

O IMB é uma organização brasileira, de caráter científico e sem fins lucrativos e econômicos, que tem como objetivo a conservação dos meros. Seu quadro é formado por pesquisadoras e pesquisadores com relevante experiência acadêmica e no terceiro setor, com significativa experiência na conservação e uso racional da biodiversidade marinha.

Confira a carta na íntegra a seguir:

Curitiba,18 de janeiro de 2021

Carta aberta do Instituto Meros do Brasil sobre afundamentos do "Programa Nacional de Revitalização do Ecoturismo Náutico"

O Instituto Meros do Brasil (IMB) é uma organização brasileira, conservacionista dos recursos naturais, de iniciativa particular e de caráter científico, cultural e filantrópico, sem fins lucrativos e econômicos, que objetiva a conservação do Mero, Epinephelus itajara, espécie de peixe criticamente ameaçada de extinção. O IMB tem dentre seus princípios o desenvolvimento de estudos e pesquisas científicas, tecnologias, produção e divulgação de informações e do conhecimento, além da conciliação entre o uso sustentável e a conservação da Natureza. O IMB possui em seu quadro de associados pesquisadores de peixes recifais do Brasil, além de professores universitários, mestres, doutores, pós-doutores e instrutores de mergulho, todos com grande experiência em trabalhos no âmbito da conservação e uso racional da biodiversidade marinha.

A divulgação do Programa Nacional de Revitalização do Ecoturismo Náutico, proposto pelo Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur), que prevê o afundamento de centenas de equipamentos (embarcações, aviões, carros blindados, esculturas gigantes, entre outros equipamentos) para estimular o turismo náutico nos causou grande preocupação, tendo em vista os impactos que a instalação de tais estruturas podem causar nos ambientes naturais e na sua biodiversidade.

Levando em conta esses impactos, questionamos a necessidade de afundamentos para estímulo ao crescimento socioeconômico em geral e do turismo em particular. Grande parte do litoral brasileiro já possui inúmeros recifes naturais e centenas de naufrágios históricos, ambos com grande importância ecológica e elevado potencial turístico ainda pouco explorados.

A implantação de recifes artificiais causa alterações na estrutura das comunidades de peixes (Simon et al., 2014), atraindo espécies ameaçadas de extinção, como o Mero, para verdadeiras armadilhas, amplificando os conflitos entre a pesca e o setor turístico. São muitos os relatos em todo o litoral de meros capturados ou feridos observados nestas estruturas (ver: https://tinyurl.com/yxvwlt3g). Isso reforça que os atuais programas de fiscalização não são eficientes, e no nosso entendimento quem licencia e autoriza o afundamento dessas estruturas deve ser responsável pelos impactos, que na grande maioria das vezes é socializado e o lucro privatizado. No litoral do estado do Paraná e norte de Santa Catarina já observamos uma preferência de meros por ambientes artificiais, onde realizam inclusive eventos de agregações reprodutivas, tornando a espécie ainda mais vulnerável à pesca predatória (Bueno et al., 2016). Além de espécies ameaçadas como o mero, muitas outras espécies também têm sua captura facilitada em recifes artificiais que assim impactam os estoques através da sobrepesca, agravado ainda mais pela falta de ações de fiscalização.

Outro impacto importante a ser considerado é que essas estruturas podem facilitar a bioinvasão, como a do coral sol, (Tubastraea spp.) (Creed et al., 2017), ainda em fase de expansão no litoral brasileiro. O coral sol, além de modificar a estrutura das comunidades nativas (Miranda et al. 2018), deixa os ambientes invadidos descaracterizados e monótonos (Capel et al., 2020). Representa, portanto, um sério risco tanto para a biodiversidade, quanto para o turismo. A bioinvasão é considerada a segunda maior causa de perda de biodiversidade no Planeta, sendo o ecoturismo, particularmente o náutico, dependente tanto das espécies, quanto da beleza cênica típica de cada localidade.

A proposta do governo de criar recifes artificiais se estende às Unidades de Conservação (UC), o que além dos impactos acima pode afetar o planejamento local, pois muitas UCs já possuem plano de manejo, com zoneamento de áreas para visitação turística, que visa conciliar a conservação marinha, abrangendo espécies endêmicas e ameaçadas e o desenvolvimento do ecoturismo, inclusive de base comunitária.

A presença de meros em naufrágios ao longo de toda a costa, por exemplo, é bem conhecida, porém apesar de servirem como atrativo turístico os mesmos têm sido alvo constante da pesca ilegal (Giglio et al., 2016), e assim acreditamos que um programa eficiente de educação e fiscalização seria o passo mais importante na revitalização do turismo, estimulando o respeito, a convivência e a conservação.

Acreditamos que o "Programa Nacional de Revitalização do Ecoturismo Náutico" deve investir em outros aspectos que de fato agregam valor às atividades turísticas, tais como: obras de acessibilidade, saneamento básico e limpeza pública, bem como garantir a conservação das espécies ameaçadas de extinção em seus ambientes naturais e em naufrágios já existentes, baluartes fundamentais do verdadeiro ecoturismo e desenvolvimento socioeconômico.

Assinam esta carta:

  • Dr. Claudio Sampaio - UFAL
  • Dr. Áthila Bertoncini Andrade - IMB
  • Msc. Maíra Borgonha - IMB
  • Dr. Jonas Rodrigues Leite - IMB
  • Dr. Matheus Oliveira Freitas - IMB
  • Dr. Leonardo Bueno - IMB
  • Dra. Bianca Bentes - UFPA
  • Dra. Beatrice Padovani Ferreira - UFPE
  • Dr. Maurício Hostim-Silva - UFES/CEUNES

Referências

  • Bueno, L. S.; Andrade, A.B.; Koening, C.C.; Coleman, F.C.; Freitas, M.O.; Leite, J.R.; Souza, T.F. & Hostim-Silva, M. (2016). Evidence for spawning aggregations of the endangered Atlantic goliath grouper Epinephelus itajara in southern Brazil. Journal of Fish Biology v. 89, p. 876-890.
  • Capel, K.C.C.; Creed, J.C. & Kitahara, M.V. (2020). Invasive corals trigger seascape changes in the southwestern Atlantic. Bulletin of Marine Science. 96(1):217–218. https://doi.org/10.5343/bms.2019.0075
  • Creed, J. C. et al. (2017) The invasion of the azooxanthellate coral Tubastraea (Scleractinia: Dendrophylliidae) throughout the world: history, pathways and vectors. Biological Invasions, 19, 283–305.
  • Fernandes, V.G.; Leite, J.R.; Freitas, M.O. & Hostim-Silva, M. (2016). Mapping goliath grouper aggregations in the southwestern Atlantic. Brazilian Journal of Oceanography (Online), v. 64, p. 423-426.
  • Miranda, R.J.; Tagliafico, A.; Kelaher, B.P.; Mariano-Neto, E. & Barros, F. (2018). Impact of invasive corals Tubastraea spp. on native coral recruitment. Marine Environmental Research, 138:19–27. https://doi.org/10.1016/j.marenvres.2018.03.013.
  • Simon, T.; Jouyeux, J.C. & Pinheiro, H.T. (2013). Fish assemblage on shipwrecks and natural rocky reefs strongly differ in trophic structure. Marine Environmental Research, 90: 55-65.